Mapa do rio Vaza-Barris: do sertão da Bahia até a foz em Sergipe (Reprodução)
O rio que dá vida a este blog, Vaza-Barris, carrega em suas veias a história do Brasil. A começar pelo descomeço, seu batismo português após o desembarque da empresa colonial na costa tupiniquim.
Era maio de 1501 e o rei de Portugal D. Manuel, ciente da chegada de Pedro Álvares Cabral ao nosso litoral um ano antes, enviou uma expedição oficial de três caravelas para fazer o reconhecimento do "Mundo Novo". A bordo, como cronista da empreitada, estava Américo Vespúcio, nome que depois batizaria o novo continente, América.
Cinco meses se passaram quando os tupinambás viram o nome do seu rio, Parapitinga, roubado pela expedição real em 4 de outubro, dia de São Francisco de Assis --santo que, a partir daí, deu nome ao maior rio nacional, cuja embocadura divide os estados de Sergipe e Alagoas. Consumada a usurpação, a campanha portuguesa seguiu viagem pelo litoral, mas não contava em ser arrastada por fortes correntes marítimas, praia adentro, abocanhada por sinuosa cobra de vidro --como o poeta Manoel de Barros chamava as enseadas.
Foi aí que, contrariado que receberia nome de santo sem consentimento divino, o rio Irapiranga se encarregou da própria alcunha latina. Como as caravelas portuguesas vinham carregadas de tonéis, o cachoalhão da correnteza foi tamanho que os barris de madeira se entrechocaram e começaram a vazar. Os marinheiros a bordo que sentiram o tranco logo chamaram aquela faixa da costa de Vaza-Barris: a violenta barra que fazia o barril vazar.
O rio Irapiranga chegou a receber outros nomes como Canafístula, nos mapas da cartografia portuguesa, ou Cassía, nos registros italianos, porque Américo Vespúcio era de Florença, na Itália, escola dos principais navegadores europeus. Mas o que vingou mesmo foi sua força, e assim seu afluente mais volumoso quedou Vaza-Barris. Nesse mesmo episódio, cabe lembrar, os portugueses batizaram também a Serra de Santa Maria da Graça, que distava de 8 a 10 léguas do litoral e hoje responde por Serra de Itabaiana.
Indício importante de que a expedição portuguesa penou dias a fio encalhada na enseada do Vaza-Barris é o longo período do percurso entre o batismo do rio São Francisco e da Baía de Salvador, que aconteceu apenas no primeiro dia de novembro (Dia de Todos os Santos). Ou seja, os portugueses levaram quase um mês para percorrer a caravela um trecho curto, que Zé Peixe faria num único dia a nado, quem sabe até num fôlego só.
Um rio de terra e de sangue
O rio Vaza-Barris nasce no pé da Serra dos Macacos, no semiárido da Bahia, no município de Uauá, e percorre quase 500km até desaguar nas praias do Mosqueiro, em Aracaju, Sergipe.
De Uauá, segue sertão afora até chegar nos arredores de Canudos, onde suas águas alaranjadas de terra foram tingidas de vermelho-sangue. Foi às margens do rio Vaza-Barris que Antônio Conselheiro e os despossuídos que lhe seguiam construíram o Arraial de Canudos, onde se aglomeraram miseráveis de toda sorte, de camponeses desterrados aos negros libertos da recém-abolida escravidão. A vila, que chegou a ter 25 mil habitantes, foi dizimada entre 1896 e 1897 por quatro expedições do Exército da recém-fundada República.
Uma curiosidade útil: é do Massacre de Canudos que nasce a denominação urbana favela, exportada do sertão às periferias das grandes cidades brasileiras para designar habitações populares precárias. Na trincheira armada para destruir o Arraial, os militares se encastelaram numa encosta que chamaram de Morro da Favela --um espinhoso arbusto sertanejo que pode medir até 7m e se encontra em todo o semiárido nordestino.
Quando tombaram o último velho e o último menino da resistência, nas palavras de Euclides da Cunha, os empobrecidos militares de baixa patente do Exército retornaram ao Rio de Janeiro e receberam como pagamento pequenos pedaços de terra nos desvalorizados morros da capital, como o da Providência. Tão marcantes na identidade carioca, com o tempo os morros passaram a se chamar favela, redimensionando Canudos no contexto nacional.
Hoje, sinônimo de "quebrada", de "comunidade", tem favela em toda grande cidade brasileira; em Canudos não restou um pé sequer. Em 1969, sobre as ruínas da finada vila sertaneja, a Ditadura Militar represou o rio Vaza-Barris e inaugurou o Açude do Cocorobó (veja no mapa acima), tentando apagar da memória qualquer resquício do massacre. Mas como mexer com as águas não é mexer com brincadeira, quando o nível do açude cai os escombros ressurgem a olhos nu (veja na imagem abaixo).
A memória vive e corre com o rio Vaza-Barris. De Canudos, ele segue para Jeremoabo, passa por Coronel João Sá e adentra Sergipe, às costas da Grande Simão Dias. Do outro lado da margem, se avizinha a Pinhão, na Grande Itabaiana. Depois parte às cercanias de Lagarto até margear Itaporanga d'Ajuda --município que entre 1944 e 1949 se chamou... Irapiranga. Já na foz, o Vaza-Barris abraça o Atlântico, aguando a Crôa do Goré, a Praia do Viral e a deserta Ilha dos Namorados, barranco de terra onde um dia encalhou uma velha caravela portuguesa.
Resquícios da memória: ruínas de Canudos inundadas pelo Açude Cocorobó (Reprodução/RedeGN)


Muito bom sempre conhecer e apreciar nossa terra... parabéns...!!
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